Cada um (sua) na sua



Havia a possibilidade do sol surgir, ainda que com certa timidez, na manhã daquele sábado. E, também, como já seria de relativamente fácil previsão, ao final da tarde teríamos chuva - o que com bastante freqüência ocorre em Santos, nesta época do ano.

Com certo grau de desconfiança, observei algo que parecia ser um céu razoavelmente azulado, permeado por nuvens finas, brancas, esparsas, que apenas serviam como complementação artística para aquela curiosa ocorrência: sol. "Deu praia", como se diz na gíria das regiões litorâneas. Se "deu praia", significa que devemos tomar as providências necessárias para o direcionamento mais breve possível àquele local - já que não se pode garantir com precisão qual será a duração da benesse meteorológica dos céus litorâneos de verão.

Devidamente efetivados os procedimentos de deslocamento, encontro um local agradável para fixação de pouso. E, então, curtindo o tímido Sol, que aos poucos vai ganhando confiança para brilhar mais forte, percebo curiosas convergências de atitudes entre personagens não necessariamente tão diferentes quanto se poderia pensar.

Exercendo plenamente seu justo direito de cidadania, tanto quanto qualquer outro freqüentador daquela faixa de areia, vejo caminhando em minha direção, tranqüilamente, um alado representante das aves da região. O pombo caminhava tranqüilamente, com aquele balanço característico da cabeça, que vai para frente e para trás à medida que os passos se vão sucedendo. Procurava alguma sobra de comida, alguma migalha ou resto de alimento que possa ter eventualmente sido negligenciado - o que servir-lhe-ia perfeitamente como antepasto. Com uma educação quase britânica, e uma sutil discrição, passou caminhando suavemente ao meu lado, e, arrisco dizer, acredito ter recebido um breve cumprimento quando de sua passagem, num daqueles movimentos de cabeça sucessivos, quando olhava no meu rumo.

O companheiro alado elegantemente seguiu seu caminho, enquanto minha pessoa dirigiu-se para a barraca do "Rei do Pastel", a fim de desfrutar um saudável e bem balanceado conjunto de nutrientes, embalados em fina cobertura de massa crocante, acompanhado de uma natural e nutritiva coca-cola gelada. Ainda refletindo sobre a elegância do pombo, que caminhava a passos largos rumo a seus desconhecidos objetivos, cruza meu caminho um senhor, vendedor de praia, com seus produtos dependurados nos ombros. Trabalhava apenas no nicho de mercado das bolhas de sabão. Comercializava dispositivos produtores de bolhas de sabão. Não sei informar o nome científico de tais aparatos. Como garantia da qualidade de seus produtos, demonstrava ao vivo a efetiva produção de bolhas, as quais sem nenhuma timidez alçavam vôo ao longo da praia.

Uma breve mudança na direção dos ventos, entretanto, manobrou aquela bateria de bolhas de sabão, como se fizessem parte de um enxame de abelhas selvagens africanas, diretamente rumo à prestigiada e renomada barraca do "Rei do Pastel", visivelmente atrapalhando os procedimentos de qualidade total adotados por referido estabelecimento praiano, uma vez que o pastel sabor pizza solicitado acabaria saindo com gosto de pastel-Omo, ou pastel-Limpol. Breves palavras foram suficientes para despachar o vendedor na mesma direção para onde caminhara o pombo - não sem antes serem ouvidos alguns grunhidos de instatisfação do vendedor.

O calor já havia aumentado, suava o vendedor de bolhas, suavam os súditos do Rei do Pastel, suava o cliente na fila, e, tenho quase certeza, suava tambem o pombo britânico.

Cada um defendia, ali, naquela breve fotografia temporal, seus proprios interesses, por mais imediatos que fossem. O cliente aguardava na fila, para pagar e pegar seus pastéis, o Rei do Pastel fortalecia seu reinado, o vendedor de bolhas divulgava seus dispositivos, e o pombo buscava se deliciar com algum quitute inesperado porventura encontrado à beira do caminho.

Fugaz foi o momento em que tais personagens compartilharam o cenário. Num piscar de olhos, já não mais faziam parte da mesma cena. Cada um havia seguido seu caminho.

Fica, entretanto, impressa no álbum fotográfico da memória, aquela pintura imaginária, onde um pombo, um vendedor de bolhas de sabão e um pasteleiro, separadamente juntos numa cena inventada de um filme inexistente, ensinavam um pouco sobre a arte de sobreviver.

Comentários

  1. Saber ver a vida acontecendo, coisa rara, fantástica a crônica... Este final: "[...] separadamente juntos numa cena inventada de um filme inexistente, ensinavam um pouco sobre a arte de sobreviver." EU ADOREI.

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  2. Sábio Sandro, essa do Pombo (merece uma maiúscula) foi demais ! Só faltou você colocar que "a vida segue seu ritmo e o rio segue seu curso" ...
    Quem sabe em uma próxima crônica!
    Um abração
    Rubinho

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