O Garoto Voador


Meu pai é uma figura brilhante. Excelente profissional da área médica, atua com competência e dedicação, tanto nos seus estudos e preparação acadêmica, quanto no dia-a-dia, no contato direto com seus pacientes. Sua vocação fica mais clara quando se completam as habilidades científicas com uma elevada sensibilidade humana, gerando um trato cuidadoso entre o profissional e o paciente. A atenção e o cuidado dispensados, muitas vezes, acabam curando tanto quanto as providências diretamente clínicas e medicinais. Muitas são as vezes em que as pessoas precisam mais de uma palavra amiga e de um olhar atento, do que propriamente de medicamentos.

Meu avô também era uma figura brilhante. Com um senso crítico apurado, traduzia situações da vida de forma curiosa e sucinta. Bastante observador, e também bastante prático, não desperdiçava muito tempo com conversas desnecessárias.

Ocorre que, ainda enquanto criança, meu brilhante genitor manifestou um justo desejo ao seu pai, coisinha simples de resolver: ele decidiu que queria voar.

Não se sabendo ao certo quais as verdadeiras motivações levaram-no à exteriorização de tal desejo, o fato é que houve uma decisão clara naquele sentido. Simples e direto.

Meu avô, prático como era, informou sobre a impossibilidade de se atingir tal objetivo, ao menos ali, na porta da casa onde viviam, sem as necessárias tecnologias e aparatos - não que tenha havido tais adendos informativos - apenas uma breve comunicação ilustrativa, dando conta que "gente não voa", já bastou.

Intrépido e dedicado, o empolgado garoto insistiu na demanda: "quero voar". O prático e pragmático ascendente direto, mais uma vez, pacientemente, transmitiu a informação necessária ao insistente rapaz: "gente não voa". Aparentemente resolvida a questão.

"Quero voaaaaar!", insistiu o bravo rapaz.
"Gente não voa".

"Mas eu quero voaaaar!"
"Quer voar, é?"
"Quero!!!"
"Então vem cá..."

Existe mesmo uma disputa, entre Santos Dumont - brasileiro - e os Irmãos Wright - americanos, a fim de se definir quem realmente inventou o avião. Os partidários de Santos Dumont dizem que ele decolou por propulsão própria, enquanto os Irmãos Wright pilotaram alguma geringonça que, apesar de planar, precisou partir de um lugar mais alto, em que pese terem feito isso um pouco antes do brasileiro.

Polêmicas à parte, o fato é que, enquanto balançava o garoto, segurando-o pelas calças e pela camisa, aquele rapaz finalmente atingiria seu sonho! Iria voar! E, inclusive, com metodologia similar a Santos Dumont, uma vez que estaria partindo do próprio solo. A propulsão providenciada por seu pai, naquele balanço-calção-camisetístico, seria equivalente aos motores do 14-Bis, portanto, igualmente aplicável à situação.

Preparado já estava. Bastaria apenas aplicar os conhecimentos previamente adquiridos ao observar os pássaros, abundantes naquela região. Vastos intervalos de tempo dedicados à observação precisa da movimentação das asas proporcionariam certamente conhecimento mais do que suficiente para a execução daquela simples tarefa.

E, então, como num passe de mágica ele voou.
O vento no rosto, sensação maravilhosa, comprovava suas suspeitas.
Ele estava voando.

Aquela etapa, portanto, estava resolvida.
Restavam apenas pequenos detalhes a serem ajustados: como manter o vôo, e como aterrissar.
Isso era de somenos importância, comparado à glória daquele momento.
Buscando a permanência no ar, começou a bater as asas, digo, os braços, de forma rápida e coordenada, o que, para sua surpresa, não surtiu efeitos.

Os três segundos de duração daquela aventura aeroespacial não foram suficientes para ulteriores reflexões, nem mesmo para melhores planejamentos logístico-estratégicos sobre um pouso seguro.
Tão logo a providência de bater os braços demonstrou-se ineficaz, já se iniciavam os procedimentos de  descida.

Não houve aviso sobre o clima e a temperatura ambiente no local do pouso.
Não houve também tal necessidade. O clima era o mesmo da origem.

A aterrissagem transcorreu sem maiores incidentes.
Alguns arranhões, alguma poeira levantada pelo chão de terra batida, e um silêncio sutil avisava que o garoto voador já havia atingido seu objetivo.
Poderia partir para novas conquistas.

Assim como o garoto voador, desejo que você possa seguir no rumo dos seus sonhos.
Não se preocupe em ter pressa de atingi-los, cada vôo possui o seu próprio tempo.

Nossas conquistas nem sempre nos trazem os exatos resultados que esperávamos. Às vezes algumas providências que tínhamos como infalíveis, inexplicavelmente, deixarão de funcionar. E, literalmente, ficaremos de "mãos abanando". Não faz mal. Restam-nos ainda o vento no rosto, e o orgulho de poder dizer que tivemos a coragem de decolar.

Quanto à aterrissagem, não se preocupe.
É justamente dela que você precisa.
Só assim você se libertará, e poderá partir para novas aventuras.

Feliz ano novo!

Comentários

  1. Adorei Sandrinho! Que bom que temos tantos talentos na nossa família pra contar os "causos" do "seu" Ary, que não podem ser esquecidos...

    Feliz Ano Novo e muitos vôos pra você também!

    ResponderExcluir
  2. O bom de tentar voar é que do chão a gente não passa :) Adorei Sandrim!!

    ResponderExcluir
  3. Sandrinho, que lindo... além de adorar o texto fiquei muito emocionada, me fez lembrar que eu também voei quando tinha 3 anos... vestida de anjo, bati as asas e aterrissei na penteadeira da mamãe... de lá para o hospital foi rápido e os vestígios dos treze pontos ainda estão em minha testa... Depois disso voei mais algumas vezes... é muito bom... quero continuar voando e desejo o mesmo a você! :)

    ResponderExcluir
  4. Sandro, quanta sensibilidade.
    me emocionei com o texto e suas entrelinhas...
    um beijo grande, no coração.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas